Nem sempre reconhecida pelos pares ou pacientes, a Endodontia tem um papel central no tratamento dentário. Um painel de médicos dentistas com experiência comprovada aponta as conquistas desta área da Medicina Dentária, prestes a tornar-se uma especialidade por inteiro.
“A Endodontia representa hoje em dia uma das áreas nucleares da Medicina Dentária, dado que é muitas vezes o tratamento de última linha antes da perda dentária e reveste-se de uma importância extrema na manutenção de dentes saudáveis”, defende Rui Pereira da Costa, médico dentista e vencedor do Prémio Saúde Oral 2012 na área de Endodontia. Uma visão partilhada por Luís França Martins, médico dentista para quem “esta área está em verdadeira ebulição. Não só os conhecimentos teóricos têm sido aprofundados, como os avanços técnico-científicos que se têm registado. Todos os meses chegam ao mercado novas opções, desde sistemas de instrumentação a obturação. As novidades são constantes”.
Criar sinergias
“Vivemos numa época em que a extração e a reabilitação com implantes são, muitas vezes, a solução privilegiada em casos complicados. No entanto, com o avanço de novas técnicas, sistemas e materiais em Endodontia tem sido possível alcançar um grau de sucesso semelhante e de forma mais conservadora”, descreve Diana Sequeira, médica dentista. Em vez de “concorrentes”, a Implantologia e Prostodontia devem, na opinião dos entrevistados, ser “parceiras”. Como realça Rui Pereira da Costa, “a implantologia tem o seu espaço na reabilitação de espaços edêntulos, mas a Endodontia deve andar de mãos dadas com a Prostodontia em reabilitações dentossuportadas, garantindo longevidade e sucesso.”
Para Luís França Martins, importa “integrar a opção do tratamento endodôntico realizado dentro dos mais altos padrões de qualidade, englobando-a num leque de opções para abordar cada caso clínico. A Endodontia tem importância, não só pela crescente consciencialização da classe profissional e do público da manutenção das peças dentárias, mas também pela conjuntura socioeconómica, que pode limitar as opções de reabilitação e levar-nos a abordar casos de dificuldade extrema”. Por outro lado, “a investigação clínica de qualidade aumentou. Muitos mitos acerca da imprevisibilidade do tratamento endodôntico que ainda pairam no discurso generalista estão hoje estudados e ultrapassados, existindo uma base científica sólida para o exercício clínico seguro e eficiente”, explica João Miguel Marques dos Santos, vencedor do Prémio Saúde Oral 2013 na área de Endodontia.
Avanços recentes
No que respeita à tecnologia, e apesar de não ser já uma novidade, “o microscópio operatório continua a ser um dos maiores avanços da Endodontia moderna”, defende Rui Pereira da Costa. Uma opinião partilhada por João Miguel Marques dos Santos, que valoriza o número crescente “de profissionais que tem implementado o seu uso sistemático, com uma melhoria em todas as etapas do tratamento.” Na inovação, Diana Sequeira destaca ainda a regeneração que “recentemente tem sido alvo de grandes estudos. A preservação da vitalidade dentária, em casos de necrose com rizogénese incompleta, permite um fortalecimento da estrutura dentária compatível com um desenvolvimento dentário natural.”
As técnicas e materiais para a preparação dos canais radiculares registaram também uma evolução. “Os últimos anos centraram-se no aprimoramento metalúrgico dos instrumentos endodônticos. Apesar do níquel-titânio ser a liga metálica de eleição dos instrumentos mecanizados da atualidade, novos desenhos, processos de fabrico e movimentos das limas na instrumentação aumentaram a sua eficácia e segurança”, refere Rui Pereira da Costa. “Os sistemas de agitação mecânica, sónica e ultrassónica para ativação de irrigantes já demonstraram permitir, in vitro, um aumento da eficácia e eficiência do hipoclorito de sódio na capacidade de dissolução da matéria orgânica. O fundamento biológico para a sua utilização clínica já existe. Os sistemas de irrigação com pressão negativa e alternada permitem otimizar a eficácia antimicrobiana e de remoção de resíduos produzidos pela instrumentação canalar,” afirma João Miguel Marques dos Santos.
Desinfeção: uma prioridade
“O conhecimento científico atual aponta as falhas na desinfeção como a principal causa de insucesso no tratamento endodôntico”, afirma Luís França Martins, médico dentista com prática exclusiva em Endodontia, apontando como causas para este problema “as dificuldades anatómicas ou complexidade do caso, e o facto de possuir ou não a tecnologia e conhecimento que permitem a sua resolução.”
“A preparação química e mecânica do canal é talvez a etapa fulcral do tratamento endodôntico. Uma boa conformação e desinfeção tridimensional canalar permite a eliminação da componente bacteriana e é fundamental para um selamento/obturação canalar que possibilite a reparação/regeneração tecidular e a manutenção do dente em plena função. Vários têm sido os esforços para o aperfeiçoamento desta etapa. O aparecimento de sistemas de irrigação com pressão negativa ou alternada permitem uma melhor irrigação apical, vencendo o efeito ‘vapor lock’. A agitação, o aquecimento, o tempo de aplicação, a concentração e o tipo de solução irrigante utilizada são também determinantes”, explica Diana Sequeira.
Ainda no âmbito da antissepsia intracanalar, João Miguel Marques dos Santos considera que “a irrigação desempenha um papel primordial neste desiderato e a terapia fotodinâmica tem potencial para otimizar este processo porque possibilita a utilização de nanopartículas que podem ser ativadas, in loco por uma fonte de luz e desencadear uma ação destrutiva direcionada aos microrganismos, sem afetar as células do hospedeiro, tornando-se assim uma mais-valia em termos de biocompatibilidade relativamente às opções atualmente disponíveis”.
Práticas comuns em consulta
De um modo geral, e apesar dos avanços registados, o uso de técnicas de instrumentação manual prevalece. Esta situação deve-se, explica Rui Pereira da Costa, “ao facto de ser a técnica que se aprende na licenciatura e de as técnicas mecanizadas aumentarem os custos do tratamento e requererem formação adicional. Não duvido que a tendência é para que as mecanizadas tenham uma penetração crescente.”
O caso determina a escolha das técnicas, como ilustra Diana Sequeira: “A abordagem de um caso de necrose pulpar com rizogénese completa é totalmente diferente do procedimento perante um ápice imaturo. O aparecimento de novos materiais, como os à base de silicato de cálcio, tem revelado grande impacto nestes tratamentos. Cada vez mais se privilegia a instrumentação mecanizada do sistema canalar, com um ou vários dos sistemas de limas disponíveis, e o recurso a técnicas de irrigação dinâmicas.”
João Miguel Marques dos Santos, médico dentista, aposta igualmente na tecnologia, destacando as “técnicas de preparação canalar mecanizada com instrumentos de Níquel-Titânio, sistemas de irrigação sónica e ultrassónica, técnicas de obturação canalar com cimentos à base de cimentos de silicato de cálcio e revascularização/regeneração de tecidos pulpares/periapicais.” Face ao leque de opções disponível, Luís França Martins preconiza “o uso de vários sistemas de instrumentação e obturação para adaptar a escolha ao caso clínico em questão. A atitude mais abrangente é a mais correta. Não acredito que um sistema seja ideal para todos os casos, mas que devemos tirar partido das vantagens de cada um.”
O que explica o (in)sucesso
Com uma taxa de sucesso na ordem dos 90%, segundo os estudos, falar de dificuldades nos tratamentos endodônticos parece irrelevante. Para o médico dentista João Miguel Marques dos Santos o tema é complexo e começa na definição de sucesso, que não é consensual: “Num sentido estrito, que implica ausência de sinais e sintomas clínicos, aliado ao restabelecimento da normalidade radiográfica dos tecidos periapicais do dente tratado, poderemos indicar, grosso modo, uma taxa de 85% após um período de follow-up de cinco anos. Contudo, o sucesso depende de fatores pré-operatórios (presença ou ausência de patologia periapical, estado periodontal, grau de compromisso estrutural), intraoperatórios (isolamento absoluto ou relativo, perfurações, técnica de obturação canalar) e pós-operatórios (tipo de restauração coronária pós-endodontia), bem como do nível de diferenciação do médico dentista.”
Segundo Rui Pereira da Costa, “os estudos científicos demonstram que a infiltração coronária é talvez o principal motivo de insucesso. Também a falha em localizar canais previamente existentes ou acidentes de procedimentos podem ter um impacto importante nas taxas de insucesso.”
Diana Sequeira destaca como casos mais complicados “as calcificações distróficas e a reabsorções internas/externas. O microscópio cirúrgico é fulcral no tratamento deste tipo de casos, no entanto nem sempre se encontra disponível.” Como razões para o insucesso, João Miguel Marques dos Santos refere ainda “as falhas no diagnóstico (fissuras/fraturas radiculares subavaliadas), técnicas de tratamento abaixo dos padrões estabelecidos pelas organizações da especialidade (European Society of Endodontology) e, segundo os estudos epidemiológicos, o facto dos dentes com tratamento endodôntico não serem restaurados adequadamente, isto é, com recobrimento de cúspides, onlays ou coroas capazes de conferir o reforço estrutural necessário a que se evitem fraturas verticais.”
Principais obstáculos
Na experiência de Diana Sequeira, “as principais dificuldades nesta área relacionam-se com a preparação canalar de dentes com anatomia anómala ou com ápice imaturo e podem ser contornadas, dentro do possível, recorrendo à combinação de técnicas de instrumentação e obturação, bem como à utilização de diferentes biomateriais”. Corrigir tratamentos anteriores pode também representar um desafio. “A necessidade de correção de tratamentos prévios é transversal a todas as áreas da Medicina Dentária, contudo na Endodontia implica recursos técnicos, preparação e tempo que a tornam mais impactante”, comenta João Miguel Marques dos Santos. “O retratamento endodôntico, cirúrgico ou não, é uma abordagem de elevado grau de dificuldade”, reconhece Rui Pereira da Costa, frisando que “é fundamental que o paciente entenda que pressupõe uma abordagem mais complexa, exigente, demorada e dispendiosa”. Além de eventuais erros, “um tratamento endodôntico correto, mesmo tendo índices de sucesso muito altos, pode vir a necessitar uma segunda intervenção”, diz.
Na opinião de Luís França Martins, o cenário tem-se alterado nos últimos cinco anos “e neste momento a taxa retratamento versus tratamento primário está mais equiparada. Penso que isto se deve à consciencialização de que as abordagens nesta área se alteraram e à procura de formação específica, o que se reflete num aumento na qualidade dos tratamentos e taxa de sucesso.”
Mais informação e reconhecimento
Desconhecimento sobre os tratamentos endodônticos ou limitações de ordem económica são comuns a muitos pacientes. Segundo Rui Pereira da Costa, a informação é escassa: “O termo ‘desvitalização’ continua a ser o único de que ouviram falar e sempre com equívocos associados. Pela minha experiência, as poucas pessoas que procuram, por sua iniciativa, um especialista em Endodontia são aquelas que se deram ao trabalho de fazer pesquisa na internet. Têm quase sempre um problema complicado, já observado e/ou abordado por vários médicos dentistas e que não conseguiu ainda ser resolvido”. Diana Sequeira recorda que “as principais situações que levam as pessoas à consulta são as urgências por dor. Cada vez mais as pessoas estão sensibilizadas para a importância da Endodontia, mas a situação económica dita muitas vezes qual a opção de tratamento a seguir.”
A criação de um colégio de Especialidade de Endodontia, há muito ambicionada, está em curso. O Conselho Diretivo da OMD realizou uma discussão pública, com toda a classe de médicos dentistas, sobre o projeto de regulamento vocacionado à implementação da endodontia enquanto especialidade. Desta consulta resultou o documento final que lançou os princípios enunciadores da criação deste título de especialidade e que foi publicado a 12 de junho de 2013 na II série do Diário da República (regulamento nº 220/2013). O processo de implementação da especialidade prossegue os trâmites legais definidos, estando prevista a tomada de posse do colégio de Endodontia para breve.
Futuro promissor
O otimismo marca a visão dos entrevistados, que valorizam a qualidade da preparação dos seus pares e a oferta formativa, tanto universitária como proposta por entidades como a Ordem dos Médicos Dentistas. Contudo “existe ainda um percurso a realizar para que os avanços da Endodontia possam beneficiar mais pessoas. Por um lado, os profissionais necessitam de melhorar a avaliação pré-operatória e desenvolver uma relação de confiança com colegas diferenciados na área, para referenciarem os doentes antes de, com a sua intervenção, comprometerem o prognóstico de um caso que já era complexo. Por outro, os profissionais e associações devem promover o esclarecimento da população sobre os benefícios dos tratamentos conservadores” diz João Miguel Marques dos Santos. “Assistimos a evolução, no entanto alguns princípios são inabaláveis e penso que apenas a forma de o alcançarmos poderá mudar, o objetivo não”, comenta Luís França Martins antevendo que “até que as tecnologias de manipulação genética ou de regeneração tecidular nos permitam recriar tecidos vivos e funcionais perdidos e suplantar o atual, a implantologia e o tratamento endodôntico continuarão a ser o Golden Standard nos tempos futuros. Há um aumento de interesse e investigação na área de revascularização ou regeneração pulpar, mas num futuro mais próximo iremos assistir à melhoria nas técnicas de desinfeção, com melhores resultados e o mínimo desgaste de estrutura dentária possível.”
Artigo publicado na edição de maio/junho de 2014 da revista SAÚDE ORAL